quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Clara

Ela tinha cabelos castanhos. ela tinha a altura média das crianças da idade. tinha um travesseiro velhinho sem o qual ficava difícil dormir. tinha um irmão maior, uma mãe, um pai e flores risonhas no jardim. tinha nove anos, e desde que assistira um certo filme muito triste sobre a guerra lá longe, um telejornal triste, um homem dormindo na calçada, passou a ter também além de todas as coisas um sentimento de mundo que custava a fazer silêncio na hora de dormir e que não adormecia.
Cansada dos males do mundo um dia, olhando o sorriso das flores no jardim, ela teve uma grande idéia. Juntaria quarenta e cinco garrafas vazias e mandaria canções de amor, problemas de matemática, piadinhas de bom gosto, qualquer coisa, aos quatro cantos do mundo, pra contar a quem respirava como ela que só por isso ela já sentia alguma coisa por eles, que não era pra eles se sentirem tão ilhados assim.
Mobilizou os colegas da escola para a arrecadação das garrafas, bateu nas casas vizinhas, foi às lanchonetes, sempre fazendo segredo sobre seu plano. Não queria que a tratassem com a ternura de abandono que merecem os beija-flores quando tentam com seu biquinho apagar um incêndio enorme na floresta.
Juntou trezentas e ointenta e uma garrafas. colocou mensagens dentro delas com o cuidado de quem borda um presente pro irmão que ainda não veio.
Jogou as garrafas no córrego mais próximo da sua casa o mais rápido que pôde, o céu escuro estava de fazer medo.
Nunca chovera tanto na cidade, o vento balançava os postes e seus fios como se fosse coreografia. Era tanta água, o córrego, entupido pelas trezentas e oitenta e uma garrafas cheias de carinho, transbordara. Agora arrastava os carros, entrava nas casas próximas sem pedir. desalojou pessoas, afogou um gatinho distraído.
E fim, como se houvesse.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

sobre um longo dia.

(...)
($%&%$#&$#!)
(aula.)

A música foi a grande decisão do homem
de abraçar o invisível. - Rita Apoena

durante o show da Mônica Salmaso foi abraço que aninharia o mundo inteirinho com todos os seus filhotes, de grande e bonito que foi. os compassos que ela soprou brincaram de ciranda com as borboletas do meu estômago. e eu saí assim, como se fosse possível compreender a vida num suspiro, como se desse pra apreender o mundo numa nota alongada.

e ainda descobri que 'Você, você' é um filho cantando pra mãe. achei graça e morri de ternura, poque 'Você, você'
enfim

{Que roupa você veste, que anéis? Por quem você se troca? Que bicho feroz são seus cabelos que à noite você solta? De que é que você brinca? Que horas você volta? Seu beijo nos meus olhos, seus pés que o chão sequer não tocam, a seda a roçar no quarto escuro e a réstia sob a porta. Onde é que você some? Que horas você volta? Quem é essa voz? Que assombração seu corpo carrega? Terá um capuz? Será o ladrão? Que horas você chega? Me sopre novamente as canções com que você me engana. Que blusa você, com o seu cheiro deixou na minha cama? Você, quando não dorme quem é que você chama? Pra quem você tem olhos azuis e com as manhãs remoça? E à noite, pra quem você é uma luz debaixo da porta? No sonho de quem você vai e vem com os cabelos que você solta?Que horas, me diga que horas, me diga. Que horas você volta?} Você, você- Chico Buarque.